Termina hoje a terceira disciplina de estatística que ministrei no Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação da Biodiversidade, aqui na UESC. Digo terceira porque, embora eu já tenha ministrado ela uma vez, mudei bastante o conteúdo e a forma nesta segunda edição, e é como se fosse uma outra disciplina; poucos materiais reaproveitei e algumas coisas adicionei a ela. E isso é recorrente; as primeiras versões dos cursos de Excel e de Past que ministrei pouco tinham a ver com as versões seguintes. Ou seja, eu nem espero que a primeira versão de um curso, uma disciplina, uma aula… seja em algo parecido com as versões subsequentes. Por mais que a disciplina seja planejada antes, “a diferença entre a teoria e a prática é que em teoria não há diferença” e “um plano de batalha só é válido até a primeira lança ser erguida”*.
Turma da disciplina de Fundamentos de Estatística Monte Carlo e de Programação em R para Ecologia (o nome real da disciplina é outro, mas este é mais bonito! rs) – 2016
Neste post não darei conselhos sobre como ensinar estatística, nem sobre como ministrar disciplinas na pós-graduação (ou em qualquer outro lugar). Não me sinto qualificado para dar tais conselhos; não por enquanto. Quiçá daqui a alguns anos. Aqui vou apenas compartilhar algumas ideias que tenho sobre o assunto e um pouco da minha experiência.
Talvez a maior surpresa que tive nessas empreitadas foi que ensinar estatística é muito diferente de simplesmente dar um minicurso sobre um programa estatístico. Eu já havia ministrado cursos de um ou dois dias sobre Excel, Calc, Past e R, em diferentes universidades, e cheguei a pensar que dar uma disciplina seria parecido com isso. Não é. Um software é, afinal, apenas uma ferramenta, e não é necessário ensinar desenho arquitetônico para ensinar a usar uma furadeira. Não é necessário ensinar os fundamentos por trás da ANOVA para ensinar a usar o Past e tampouco os fundamentos da regressão linear para ensinar a fazer um gráfico e ajustar uma linha a ele em R.
Uma disciplina é mais do que isso.
Turma da disciplina de Análise de Dados Ecológicos por Aleatorizações, Bootstrap e Monte Carlo – 2015, a primeira turma a quem busquei ensinar estatística.
Uma disciplina, a meu ver, precisa sim passar as ferramentas, mas não pode, exceto em casos muito específicos, se limitar a elas. Precisa passar os fundamentos, a teoria que existe naquela área, e fornecer subsídios para um aprimoramento independente após o término das aulas e a entrega dos trabalhos finais. Para isso, não basta analisar conjuntos de dados, copiar e rodar scripts – é preciso entender, ao menos superficialmente, o que acontece quando fazemos isso. E não basta analisar conjuntos de dados, copiar e rodar scripts e entender superficialmente a álgebra da análise – precisamos entender também os fundamentos teóricos por trás dela. E não basta analisar conjuntos de dados, copiar e rodar scripts, e entender superficialmente a álgebra da análise e os fundamentos teóricos que a sustentam – é preciso também perceber que há por trás de tudo isso uma filosofia que guia (ou não) a nossa tomada de decisão. Em se tratando de análise de dados ecológicos (não vou opinar sobre outras áreas), não há receitinha de bolo ou um esquema simples a ser seguido (mas veja isso).
E falando nisso – teoria e prática são dois lados da mesma moeda (ou do mesmo D2). Com isso em mente, eu sempre misturei a prática e a teoria nas minhas aulas e cursos. Eu explicava o funcionamento de um teste e logo em seguida rodava ele no Past ou no R. Mas não mais. Seguindo a sugestão de uma discente (valeu, A(n)drielle!), nesta última disciplina separei os conteúdos: dei aulas teóricas e aulas práticas em dias diferentes e intercalados. Assim, em um dia eu passava a teoria e no outro fazíamos práticas relacionadas à aula anterior. Nem sempre os dois tipos de aula andavam em conjunto – às vezes a teoria é simples mas a prática é complicada (cadeias de Markov) e às vezes é o contrário (bootstrap). De qualquer modo, me parece (estou falando isso sem base teórica alguma) que são formas diferentes de pensar. Pensar sobre a teoria subjacente a um teste estatístico e as aplicações dele é diferente de pensar sobre quais comandos escrever ou quais botões apertar para rodar este teste sobre um conjunto de dados. Sendo assim, faz sentido separar os dois aspectos, para que a pessoa não precise ficar alternando constantemente entre duas formas de pensamento.
Turma da disciplina de Estatística Básica – 2016
E falando em teoria e prática – algo que pretendo começar a fazer é passar lições e exercícios relacionados à teoria. Tenho sempre passado vários exercícios, para serem feitos em sala de aula ou depois, mas sempre sobre a prática, a aplicação das ferramentas, e a teoria fica talvez relegada a um segundo plano. Fazer exercícios em sala de aula me parece muito bom para o aprendizado; e tento seguir nisso os exemplos de grandes professores com quem tive aula, como Marco Batalha e Marco Mello, ou cujas aulas acompanhei (Miltinho Ribeiro). E fazer lições em casa é importante para absorver, interiorizar o conteúdo. Muitas vezes podemos achar que estamos entendendo aquela matéria mas quando ficamos por conta própria todo o nosso entendimento se esvai. É quase como se estar na sala de aula distorcesse a realidade, da mesma forma que a presença do orientador faz…
E falando em sedimentar conteúdo – ninguém adquire a faixa preta em uma arte marcial depois de um mês de treino intensivo (eu acho). Do mesmo modo, ninguém vira expert em um assunto depois de duas semanas de aulas intensivas sobre ele. Para de fato aprender algo – e não estou falando necessariamente de adquirir maestria de um assunto – é preciso praticar, ler, estudar, praticar, estudar, ler, praticar, aplicar aqueles conteúdos… Uma disciplina pode fornecer as bases para isso. Mas as disciplinas nos programas de pós em Ecologia que conheço são condensadas. E quando o assunto é complicado, talvez seja necessário um tempo para que os conteúdos sejam absorvidos, e avançar de um conceito básico (como aleatorizar dados) até um mais avançado (modelos autoregressivos) em uma ou duas semanas me parece um tanto surreal. Não é pela quantidade de horas de aula, e sim pelo tempo entre elas. Se houver um período de alguns dias entre uma aula e outra, neste tempo o material passado possa quiçá ser melhor apreendido e, assim, de fato aprendido – mesmo que haja outros conteúdos sendo passados neste período, em outras disciplinas. Muitas vezes não é possível – existe trabalho de campo, existem discentes e docentes vindos de fora; mas às vezes é. E a meu ver alguns conteúdos deveriam ser passados desta forma – com tempo para sedimentar, absorver, aprender e apreender o conteúdo. A solução parcial que achei para isso é dar um prazo bem grande para entrega de trabalhos finais, mas sinto que ainda falta algo.
…Mas isso sou eu falando sem nenhuma base teórica e com pouca prática, então sintam-se livre para ignorar tudo que escrevi. :-)
* Frase recorrente na série de livros Wheel of Time, do escritor Robert Jordan. É usada com variações: até a primeira flecha ser lançada, até a primeira espada ser desembainhada… A idéia é sempre a mesma: por mais que algo – uma batalha, mas eu aplico ela inclusive a atividades de educação ambiental – tenha sido bem planejado, há muito que não pode ser previsto, e é importante – eu diria essencial – manter certa flexibilidade e fazer mudanças nos planos. Eu inclusive penso que essa é uma diferença crucial entre uma aula e uma palestra: a aula requer mais flexibidade, justamente devido a uma maior interação entre docente e discentes.