Domine uma coisa

No anime Kimetsu no Yaiba, um personagem que não vou falar quem é sofre por não conseguir avançar nas técnicas de combate que deve aprender. Ele só consegue fazer a primeira técnica – a que seria mais simples – e falha completamente ao tentar as outras. Isso, como era de se esperar, não ajuda em nada na sua auto-estima, que já é bem baixa, e faz com que ele se sinta incapaz para as lutas que deve enfrentar.

Então, o mestre lhe diz algo nas linhas de: Você deve dominar uma única coisa, e dominar algo já é motivo para comemoração. Se você consegue fazer uma única coisa, refina-a até a perfeição, leve-a até o seu maior limite. E o personagem faz isso, desenvolve até a perfeição a técnica a usa maravilhosamente bem quando está em condições de combate.1

Ele não precisou aprender as outras técnicas para ser bom no que faz, ele não precisou aprender outras habilidades mais novas – ele simplesmente se tornou extremamente bom em uma técnica que conseguiu dominar.

Inclusive, no Kendô – a arte da espada japonesa – se usam essencialmente três golpes: Men, na cabeça, Kotê, no punho; e Dô, na lateral do corpo. O Men é muito mais usado do que os outros três, e assim, em anos de treino, levado à perfeição – um golpe rápido e preciso. Não precisamos, portanto, dominar muitas técnicas distintas para termos resultados, se dominarmos bem uma técnica e ela funcionar.

Eu acredito que isso se aplica à carreira acadêmica e às coisas que precisamos aprender nela – especialmente pensando na pesquisa científica. Não de aprender uma única coisa, talvez isso seja insuficiente – mas de aprender um conjunto de coisas e as levar até a perfeição. Seja no seu conhecimento da teoria, seja nas suas habilidades para coleta de dados, seja nos seus conhecimentos estatísticos – você não precisará aprender tudo, e talvez nem seja útil tentar; aprender um conjunto limitado de coisas, mas aprendê-las muito bem, pode ser uma excelente estratégia, possivelmente a melhor estratégia – se as coisas forem bem escolhidas.

Vou dar um exemplo de estatística. Para analisar um conjunto de dados, frequentemente existem diversas alternativas (e por vezes diferentes pessoas analisando o mesmo conjunto de dados chegarão a resultados diferentes, mesmo que todas as decisões tomadas sejam válidas). Tá, alguma abordagem pode ser um pouco melhor do que outra, mas diversas abordagens serão válidas – se forem usadas corretamente, tendo suas premissas respeitadas etc. E para usar algo corretamente, é preciso entender bem aquela abordagem ou técnica, saber suas premissas, e inclusive conhecer suas limitações – situações em que ela não será apropriada e em que você deverá usar outra abordagem ou procurar alguém para te ajudar.

Então, se queremos, por exemplo, saber como um certo conjunto de variáveis explanatórias (tais como variáveis ambientais como pH do solo, profundidade do lençol freático, textura do solo, declividade, frequência de queimadas etc) afetam uma certa variável resposta (tal como a área basal de plantas lenhosas naquele local), podemos usar diferentes abordagens. Podemos usar em uma abordagem clássica de testes de significância de hipótese nula, com base em regressões múltiplas e testes clássicos de significância. Alternativamente, podemos usar seleção de modelos baseada no Critério de Informação de Akaike (AIC). Ou podemos usar inferência com modelos múltiplos, talvez calculando a importância relativa das variáveis ou usando um modelo médio. Ou podemos usar uma abordagem Bayesiana. Ou podemos usar machine learning. Ou podemos usar alguma outra coisa.

E dentro de cada uma dessas abordagens, existem várias outras escolhas que podemos fazer. Iremos calcular significância estatística por testes clássicos ou por permutações? Iremos ajustar modelos lineares, não lineares ou aditivos? Iremos usar a prioris informativas ou não informativas? Novamente, diversas decisões válidas. Isso é parte do que é chamado de garden of forking paths, ou jardim de caminhos bifurcantes, e também de graus de liberdade da pesquisadora (ou do pesquisador): ao decidir como analisamos um conjunto de dados, temos várias decisões a serem tomadas, que podem levar a resultados diferentes.

Qual dessas abordagens é melhor? Todas têm suas vantagens e desvantagens – incluindo quão bem elas são conhecidas e quão facilmente serão entendidas por quem estiver lendo. Também têm diferentes fundamentações filosóficas. Então, qual usar? Brian McGill disse que “A melhor estatística é aquela que é tão amplamente entendida quanto possível e suficientemente boa para a questão sendo abordada.” Eu complementaria que, além disso, a melhor estatística é aquela que você domina bem o suficiente para usar, saber o que você está fazendo, poder avaliar se está usando corretamente e conseguir explicar como ela funciona caso alguém te pergunte – ou seja, a estatística que você domina!

Claro que não estou dizendo que você não deve estudar e se aprofundar em outros métodos – sempre pode ser uma boa ideia e abrir novos caminhos e possibilidades. E como cientistas precisamos sempre nos atualizar. Mas, você não precisa necessariamente aprender novos métodos se os que você domina funcionam bem para os seus objetivos, especialmente se são métodos flexíveis e nos quais você pode se aprimorar cada vez mais. Então, ao invés de aprender uma abordagem nova, se aprofundar mais na que você já domina, para levar o seu uso dela mais perto da perfeição.

Estou falando de estatística, mas isso se aplica a outras coisas do aprendizado, inclusive ao que decidimos aprender na pós-graduação. Dificilmente vamos conseguir dominar em detalhes tudo que precisaremos para os nossos projetos. Por exemplo, no meu doutorado eu avaliei o padrão espacial da diversidade estrutural da vegetação e também da composição de espécies, buscando relacionar com efeitos de borda. Eu me aprofundei bastante em estatística espacial, em R e métodos Monte Carlo para fazer as minhas simulações, e na teoria ecológica relacionada a efeitos de borda e a padrão espacial da vegetação. Eu também fiz bastante trabalho de campo e morfotipei as plantas que amostrava. Mas, até por limitações de tempo, eu não me aprofundei na identificação das espécies – algumas eu conseguia identificar, mas para a maior parte eu recorria a especialistas. O que é normal – afinal, trabalhos científicos hoje em dia normalmente requerem uma equipe com pessoas que têm diferentes especializações! Por outro lado, alguns dos meus colegas de laboratório se aprofundaram mais em ecologia vegetal e na identificação de espécies, aprendendo até mesmo a identificar gramíneas (sim, isso é surpreendente!) e menos na estatística – também perfeitamente normal, válido e esperado (nem todos os ecólogos são estatísticos com as botas sujas de lama; alguns não são estatísticos e alguns são mas não sujam suas botas).

Agora, um detalhe: Quando eu falo de dominar uma coisa, essa uma coisa na verdade é um conjunto de coisas relacionadas. Então, pensando em uma pós-graduação, não seria, por exemplo, ecologia do lagarto Tropidurus hygomi, mas ecologia de lagartos como um todo, ou ecologia de populações, ou ecologia comportamental; não seria ANOVA unifatorial, mas ANOVA como um todo, com todas as suas possibilidades, junto com outros métodos de teste de significância de hipótese nula; não seria ecologia do cerrado paulista, mas ecologia do cerrado como um todo.

E aí, sendo realmente boa naquilo que você escolher, você poderá tranquilamente fazer pesquisas naquela área, dar cursos e assim por diante. E para outras coisas, ou interfaces entre áreas, façamos parcerias, com pessoas que as escolheram e também as refinaram até a perfeição.

  1. Come comenta Maurício Vancine: “A forma que esse personagem aprende é a primeira forma, a mais simples dos golpes de espada. E ele treina essa até a perfeição. Também podemos fazer um paralelo: estudar os princípios das análises multivariadas (distâncias, agrupamentos e ordenação) me fizeram entender melhor as derivações dela na ecologia funcional. Então, dica aos iniciantes: estudem os fundamentos mais básicos da ecologia e/ou da estatística, as aplicações ficarão mais fáceis de entender. E conversem com seus colegas, as trocas de informação são fundamentais.” ↩︎

3 pensamentos sobre “Domine uma coisa

  1. Oi, Pavel! Ótima reflexão. Concordo contigo e com o Maurício. Por isso, complemento: enquanto ainda for um estudante, aprenda os fundamentos e desdobramentos de uma coisa só e se torne mestre nela. Depois de estabelecido, invista também em aprender direito algumas outras coisas, mas só o suficiente para compreender uma literatura mais ampla e poder conversar com quem realmente entende delas. Depois que a gente vira orientador, a importância do foco fica mais clara ainda. Não vamos orientar pessoas apenas dentro de uma especialidade muito estreita, inteiramente na nossa zona de conforto. Mas tampouco conseguiremos virar mestres de todas as coisas. Então precisamos aprender um pouco sobre os temas e abordagens centrais da tese de cada orientado. Mas só o suficiente para poder conversar com a pessoa e ajudá-la em sua jornada.

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    • Obrigado, Marco!

      Isso me faz pensar em como se realiza um trabalho interdisciplinar, pelo que lembro de palestras e aulas do prof. Charbel El-Hani, aqui da UFBA. Em um trabalho interdisciplinar – que realmente use conceitos e métodos de diferentes disciplinas – dificilmente uma única pessoa irá dominar todos estes métodos e conceitos. Afinal, dominar uma única disciplina já é difícil! Então, haverá uma equipe interdisciplinar, com diferentes pessoas dominando os conceitos e métodos das suas disciplinas, e entendendo o suficiente das outras para conseguir interagir. E também é importante sempre ter disposição e humildade para aprender sobre as outras disciplinas, mantendo sempre a mente de aprendiz (e também disposição de ensinar). E isso requer um grande nível de confiança, de que a outra pessoa realmente sabe do que está falando e o que está fazendo.

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      • Sim, com certeza! Não existe interdisciplinaridade, muito menos transdiciplinaridade, sem complementaridade, respeito e confiança. Um dos piores venenos em projetões temáticos são maus colegas que não respeitam a disciplina ou abordagem alheia.

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