Memórias de um voluntariado

Versão em áudio disponível clicando aqui.

Alguns anos atrás eu decidi passar as minhas férias – ou ao menos parte das minhas férias – fazendo voluntariado em lugares legais, que trabalhem com conservação, proteção de fauna ou temas relacionados. Pois bem, nestas férias de fim de ano eu finalmente coloquei este plano em prática; e foi uma experiência sensacionalmente boa. Acredito que estas ficarão na minha memória como as melhores e mais memoráveis férias desde que eu comecei a tirar férias; porque eu sou o tipo de pessoa que gosta de Fazer Coisas, mais do que passear e conhecer lugares, e se essas Coisas puderem ser Coisas Úteis, melhor ainda. :-) A Coisa Útil que estive fazendo foi ajudar o Projeto Mucky, um projeto que faz um trabalho lindo e sensacional cuidando de primatas – principalmente saguis e bugios – resgatados do tráfico de animais, maus tratos, acidentes… São muitos sagüis e bugios, diversos deles com problemas físicos e de saúde – em grande parte devido a maus-tratos e a acidentes que sofreram antes de chegarem ao Projeto – e uma equipe altamente dedicada a dar a estes animais uma qualidade de vida melhor – considerando que grande parte deles nem teria como ser reintroduzida à natureza.

Aqui sou eu ajudando nos cuidados com Leucena, uma fêmea de bugio-ruivo paraplégica, vítima de atropelamento.

Primeira vantagem de fazer um voluntariado: oportunidade de conhecer pessoas muito legais – que estejam estagiando, trabalhando ou voluntariando no lugar – e trabalhar junto com essas pessoas, em um trabalho em equipe de fazer inveja a muitos laboratórios de pesquisa [levando em conta, obviamente, que o foco no Mucky não é a pesquisa]. Fazia tempo que eu sentia a necessidade de trabalhar junto de pessoas assim. Pessoas que fazem bem o seu trabalho e inclusive se dispõem a ajudar em tarefas para as quais não estão escaladas mas que precisam de uma ajudinha, em prol de um objetivo maior. Foi inspirador, de verdade.

E sim, eu fui viajar em plena pandemia, quando o certo seria ficar em casa; mas, eu acho que viajar para atuar de voluntário em um lugar que realmente possa estar precisando de uma ajudinha é bem diferente de viajar simplesmente pra passear; e como fiquei o tempo todo no Projeto, eu acho que os riscos foram mínimos. E bom, eu estava me sentindo mais um programa de computador do que um serumaninho depois de oito meses em casa. Agora voltei a me sentir um serumaninho, além de conhecer alguns serumaninhos muito legais nestas duas semanas!

Eu já tinha vindo de voluntário no Mucky, por menos tempo, no final do meu doutorado, a convite da minha amiga Cinthya, que trabalhava ali na época [inclusive ela escreveu este post bem legal uns tempos atrás!]. Voltar depois de seis anos foi incrivelmente legal. Mas o mais legal é que, talvez por passar mais tempo no local mas talvez por eu estar em outra fase da minha vida, eu prestei mais atenção em algumas coisas que na época eu meio que assumi que existiam e nem me atentei muito – por exemplo, toda a parte de organização das tarefas entre membros da equipe, incluindo quem faz estágio e voluntariado. Distribuir tarefas entre pessoas é uma arte, e distribuir tarefas ente pessoas de modo que ninguém fique com uma carga de trabalho desproporcional, que haja rotatividade nas tarefas e que todas as tarefas essenciais sejam cumpridas é uma arte maior ainda. Achei inspirador ver como isso foi feito no Mucky. É claro que nenhuma atividade de coordenação é perfeita, e normalmente trabalhamos em condições sub-ótimas – por exemplo, tendo que coordenar mais pessoas do que uma pessoa consegue coordenar sozinha – e algum dia, depois que eu estudar mais o assunto, escreverei sobre isso – mas, de qualquer modo, aprendi coisas úteis sobre como coordenar pessoas nessas duas semanas.

Segunda vantagem de fazer um voluntariado: ver por dentro como é a organização de um grupo e, quem sabe, adotar práticas que considere boas para o seu próprio trabalho.

Mas acho que eu devia falar um pouco sobre o que fiz neste voluntariado, né? Não vou entrar em detalhes porque meu objetivo aqui é discutir coisas mais gerais, mas, resumidamente… Vivenciei como é a vida de tratadoras e tratadores, que cuidam de animais, dia após dia. Tarefas de rotina incluem alimentar os primatas – e tem toda uma logística pra isso, desde a organizaçao das bandejas de comida até a divisão entre pessoas de quem vai levar comida aonde e quem vai recolher depois; limpeza dos viveiros; algumas atividades de tratamento de indivíduos doentes ou que necessitam de maiores cuidados; lavagem de louça – muita louça – sério, é surpreendente como lavar louça pode ser um processo altamente eficiente e surpreendentemente interessante, inclusive com um trabalho em equipe!, e, surpreendentemente, foi uma das coisas que mais gostei de fazer e um dos poucos momentos que realmente entrei em estado de flow, totalmente concentrado na tarefa – um estado que normalmente só atinjo quando estou programando ou analisando dados – e sim, comparei lavagem de louça a análise de dados em R #mejulguem; algumas atividades de manutenção… E sem esquecer, é claro, do enriquecimento ambiental, com criação, instalação e troca de coisinhas que deixem os recintos dos primatas mais interessantes, buscando reduzir o estresse ao que os indivíduos podem estar sujeitos.

Entregando comida. Manobrei muita carriola esses dias, acho que já posso trabalhar com transporte de mercadoria. :-)
E este é um enriquecimento ambiental que fiz, juntando potinhos para criar uma espécie de chocalho no qual dá pra esconder coisinhas, como uvas-passas, pros bichinhos procurarem.

É um trabalho fisicamente pesado; eu diria que, em termos de cansaço físico, é similar ao trabalho de campo na coleta de dados ecológicos. E sim, eu estava sentindo falta de fazer coisas assim! Especialmente depois de oito meses na frente do computador :-) Mas, mais importante do que isso, eu acho que é uma experiência interessante para ver e vivenciar, na prática, como é o trabalho de biólogas e biólogos, e veterinárias e veterinários, e outras pessoas que trabalham aqui. Até mesmo porque a minha experiência foi toda acadêmica; mas eu dou aula para pessoas que não necessariamente irão seguir pra carreira acadêmica. É legal que eu possa falar pelo menos alguma coisinha, mesmo que com base em experiências curtas, sobre como é o trabalho fora da academia. Por este lado, eu acho válido, e importante, ter experiências como essa em qualquer fase da sua carreira. Normalmente atividades como estágio, ou similares a estágio, só são realizadas durante a graduação ou logo após ela – mas precisa mesmo ser assim? Mesmo tendo uma carreira já estabelecida, sempre é interessante aprender coisas novas, vivenciar outras realidades – inclusive para poder discutir essa experiência com outras pessoas. Ou seja, se alguém um dia me perguntar como é trabalhar como tratador, eu vou poder falar superficialmente sobre o assunte e terei contatos de pessoas legais que possam falar mais sobre o assunto. Acho importante isso! E também tive ideias de atividades para desenvolver em sala de aula, em disciplinas de estatística ou ecologia de populações.

Terceira vantagem de fazer um voluntariado: te permite um contato com uma realidade diferente da sua – diferente, mas talvez relacionada, se o voluntariado for em um lugar que tenha alguma relação com a sua formação e com o tipo de coisa que você trabalha. Tipo, teve um momento aqui que pensei, Estou me sentindo um biólogo! E aí lembrei, Pera, mas eu sou biólogo! Foi legal. :-)

Agora estou de volta à minha casinha, com ainda duas semanas de férias pela frente – sendo que passarei uma semana que campo, como ajudante, porque me recuso a deixar de ajudar pessoas em campo e me recuso mais ainda a deixar de fazer trabalho campo sempre que possível. Mas trabalho de campo é algo com que tenho experiência; estas duas semanas no Mucky, por outro lado, por mais que eu já tivesse estado lá, foi algo diferente, tipo daqueles quests que você ganha muitos pontos de experiência, aprende muitas coisas e conhece pessoas que não conheceria de outra forma e que valem muito a pena serem conhecidas. Recomendo.

[E se você quiser conhecer mais sobre o projeto, entre no site! https://www.projetomucky.org.br/ E se você quiser contribuir para que ele continue existindo, eles aceitam e precisam de doações; eu tenho contribuído e posso dizer que vale a pena.]

3 pensamentos sobre “Memórias de um voluntariado

  1. Muito legal sua experiência!
    Onde fica localizado este projeto? Há quantas pessoas participando entre permanentes e voluntários?
    Parabéns e abraços

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    • Obrigado, Jacques!
      Fica no interior de São Paulo, em Itu. No total…. Pera, deixa fazer as contas. rs Acho que em torno de sete tratadoras/es, umas cinco pessoas coordenando, umas quatro nas cozinhas (cozinha de primatas e de humanos), três na limpeza e umas cinco na manutenção. Às vezes tem alguém fazendo estágio e normalmente no máximo duas pessoas voluntariando… Acho que é isso.

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  2. Pingback: Mamãe Sagui e seus filhotinhos – Mais Um Blog de Ecologia e Estatística

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